Artigo publicado no jornal Correio Braziliense, dia 30 de março de 2015, na seção de Opinião.
Autora: Marta Romero - Doutora, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), coordenadora do Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e Urbanismo (LaSUS).
Brasília foi concebida dentro dos cânones da modernidade. Aproveitou, de forma feliz, as modernas técnicas de análise do sítio e, em consequência, obteve-se uma cidade localizada num sítio ameno que não apresenta extremos climáticos. Os problemas advindos da inadequação da arquitetura ao clima — um dos padrões mínimos de referência da sustentabilidade — implicam dependência tecnológica cultural permanente. Deve-se ter presente que as diferenças geomorfológicas da região tropical do Brasil e a diversidade do clima são suficientes para exigir tratamento diferenciado em relação à forma e à variedade dos espaços construídos. Brasília requer cuidados especiais, uma vez que apresenta exigências próprias dos climas quentes e secos ao mesmo tempo que as dos quente e úmidos.
Lucio Costa fez acertada leitura do sítio e acomodou o projeto à sua forma. Estabeleceu vínculo com o espaço e escolheu para a localização o triângulo contido entre os braços do lago. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo que define a área urbanizada. Se as intenções iniciais foram cuidadosas com o sítio, o que veio a seguir não mais foi acompanhado desse espírito. Especialmente, as últimas intervenções no Plano Piloto, o bairro Noroeste, por exemplo, onde a construção dos prédios e da infraestrutura foi autorizada antes da conclusão do sistema de drenagem da área, o que contribui para o carregamento de sedimentos para o espelho d’água. Parte da terra retirada do solo para a construção de garagens subterrâneas, por exemplo, acabou no lago, próximo à Ponte do Bragueto, no fim da Asa Norte.
À medida que Brasília ia sendo edificada, a paisagem natural ia dando lugar a outra, completamente diferente, por elementos estranhos àquele meio e de adaptação ainda por conhecer. Atualmente, percebem-se algumas diferenças no clima do sítio após 55 anos de urbanização acelerada.
A paisagem é valorizada a partir do contraste que apresentam os espaços construídos sobre o espaço natural. Pode-se destacar a presença do céu como protagonista na paisagem da cidade. Não é fácil ignorá-lo. O céu está presente em cada perspectiva e em cada olhar. Os edifícios foram projetados para ter como fundo as mudanças de cores do céu. Os vazios estão compostos de pedaços deste céu limpo e generoso. No Plano Piloto de Brasília, o verde é também presença constante, seja pela presença na época das chuvas, seja pela ausência na seca. Mas o paisagismo efetivado convida muito mais à contemplação do que ao usufruto. Os gramados não são tratados como pavimento urbano nem mesmo quando realizados com grama batatais, nativa da região de Brasília, resistente à seca, ao fogo, à escassez de nutrientes do solo. O lago está inacessível pela apropriação privada do solo público. Sabiamente Lucio Costa tinha estipulado no item 20 do Relatório: “evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intata, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana”.
No centro da cidade, as descontinuidades no trato do espaço púbico impedem a leitura do espaço e, consequentemente, a apropriação prazerosa dele — quer dizer, existe um espaço raso sem sombreamento, sem umidificação na seca, sem proteção dos ventos indesejáveis, ou amenização dos ruídos advindos das vias periféricas, enfim carece de medidas bioclimáticas amenizadoras mínimas imprescindíveis neste clima tropical do Planalto Central. Sem pensar ainda no uso de tecnologias inovadoras de pavimentos resfriados — refletância e absortância da carga térmica, galerias técnicas, zonas de pedestres —, potencializando os percursos e passagens cobertas, com o intuito de criar zonas de sombras durante o dia e luminosas durante a noite etc., que a capital modernista e museu de arquitetura a céu aberto mereceria. Uma das consequências geradas pelo processo de ocupação e desenvolvimento nas metrópoles é o fenômeno da ilha de calor urbana. Quantidades de ar quente se fazem presentes em maior concentração no centro das cidades que sofrem com esse desequilíbrio. E a condição dificulta a evaporação, reduz o poder de dispersão dos poluentes atmosféricos gerados, trazendo complicações para a vivência, o que aumenta a sensação de desconforto da paisagem urbana incompleta.
Autora: Marta Romero - Doutora, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), coordenadora do Laboratório de Sustentabilidade Aplicada à Arquitetura e Urbanismo (LaSUS).
Brasília foi concebida dentro dos cânones da modernidade. Aproveitou, de forma feliz, as modernas técnicas de análise do sítio e, em consequência, obteve-se uma cidade localizada num sítio ameno que não apresenta extremos climáticos. Os problemas advindos da inadequação da arquitetura ao clima — um dos padrões mínimos de referência da sustentabilidade — implicam dependência tecnológica cultural permanente. Deve-se ter presente que as diferenças geomorfológicas da região tropical do Brasil e a diversidade do clima são suficientes para exigir tratamento diferenciado em relação à forma e à variedade dos espaços construídos. Brasília requer cuidados especiais, uma vez que apresenta exigências próprias dos climas quentes e secos ao mesmo tempo que as dos quente e úmidos.
Lucio Costa fez acertada leitura do sítio e acomodou o projeto à sua forma. Estabeleceu vínculo com o espaço e escolheu para a localização o triângulo contido entre os braços do lago. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo que define a área urbanizada. Se as intenções iniciais foram cuidadosas com o sítio, o que veio a seguir não mais foi acompanhado desse espírito. Especialmente, as últimas intervenções no Plano Piloto, o bairro Noroeste, por exemplo, onde a construção dos prédios e da infraestrutura foi autorizada antes da conclusão do sistema de drenagem da área, o que contribui para o carregamento de sedimentos para o espelho d’água. Parte da terra retirada do solo para a construção de garagens subterrâneas, por exemplo, acabou no lago, próximo à Ponte do Bragueto, no fim da Asa Norte.
À medida que Brasília ia sendo edificada, a paisagem natural ia dando lugar a outra, completamente diferente, por elementos estranhos àquele meio e de adaptação ainda por conhecer. Atualmente, percebem-se algumas diferenças no clima do sítio após 55 anos de urbanização acelerada.
A paisagem é valorizada a partir do contraste que apresentam os espaços construídos sobre o espaço natural. Pode-se destacar a presença do céu como protagonista na paisagem da cidade. Não é fácil ignorá-lo. O céu está presente em cada perspectiva e em cada olhar. Os edifícios foram projetados para ter como fundo as mudanças de cores do céu. Os vazios estão compostos de pedaços deste céu limpo e generoso. No Plano Piloto de Brasília, o verde é também presença constante, seja pela presença na época das chuvas, seja pela ausência na seca. Mas o paisagismo efetivado convida muito mais à contemplação do que ao usufruto. Os gramados não são tratados como pavimento urbano nem mesmo quando realizados com grama batatais, nativa da região de Brasília, resistente à seca, ao fogo, à escassez de nutrientes do solo. O lago está inacessível pela apropriação privada do solo público. Sabiamente Lucio Costa tinha estipulado no item 20 do Relatório: “evitou-se a localização dos bairros residenciais na orla da lagoa, a fim de preservá-la intata, tratada com bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades bucólicas de toda a população urbana”.
No centro da cidade, as descontinuidades no trato do espaço púbico impedem a leitura do espaço e, consequentemente, a apropriação prazerosa dele — quer dizer, existe um espaço raso sem sombreamento, sem umidificação na seca, sem proteção dos ventos indesejáveis, ou amenização dos ruídos advindos das vias periféricas, enfim carece de medidas bioclimáticas amenizadoras mínimas imprescindíveis neste clima tropical do Planalto Central. Sem pensar ainda no uso de tecnologias inovadoras de pavimentos resfriados — refletância e absortância da carga térmica, galerias técnicas, zonas de pedestres —, potencializando os percursos e passagens cobertas, com o intuito de criar zonas de sombras durante o dia e luminosas durante a noite etc., que a capital modernista e museu de arquitetura a céu aberto mereceria. Uma das consequências geradas pelo processo de ocupação e desenvolvimento nas metrópoles é o fenômeno da ilha de calor urbana. Quantidades de ar quente se fazem presentes em maior concentração no centro das cidades que sofrem com esse desequilíbrio. E a condição dificulta a evaporação, reduz o poder de dispersão dos poluentes atmosféricos gerados, trazendo complicações para a vivência, o que aumenta a sensação de desconforto da paisagem urbana incompleta.